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A mostrar mensagens de abril, 2020
16 O almoço há muito terminado deu lugar ao repouso em sua cadeira. O gato estava sentado a sua frente com os olhos fechados. O velho na mesma posição dormitava com o semblante quase risonho. Aquele diálogo mudo já durava algum tempo. As janelas fechadas garantiam o silêncio quebrado pelo som do interfone. Era o Sr. Afonso que tinha marcado a vinda para olhar o esquentador. Há uns anos não se viam. Da última vez que foi necessário um reparo, o novo aparelho ainda estava na garantia. O Sr. Afonso já prestava serviço ao velho desde há muito anos; ele também já reformado mas ainda fazendo alguns serviços para os conhecidos. - Bem-haja por ter vindo Sr. Afonso! Há quanto tempo! Sff de entrar. O velho sorridente cumprimentou-o à porta enquanto o gato espreitava os dois, ainda sentado no sofá, com os olhos semicerrados. O velho achou o amigo bem envelhecido, já completamente calvo, magro e bem arqueado. A respiração ofegante não escondia que ainda continuava o vício do tabaco, mas
Nossa triste situação social é o resultado de nossa cultura patrimonialista. O desinteresse crônico pela política perpetua isso. Uma provável resposta para o alheamento da população pode estar nessa separação hereditária entre servo e senhor, quase como numa sociedade de castas. A grande maioria se considera sem importância e que as coisas são assim mesmo, não mudam, não há nada a fazer. Vive-se de migalhas. Não percebemos que o pouco que recebemos não é dádiva e sim o retorno do pouco que sobra da enormidade dos impostos que pagamos pra manter o feudo... Quem vive numa favela ou num apartamento de classe média está mais interessado em manter o trabalho miserável pra pagar as contas do que na ação política que pode melhorar sua situação; no imediato medíocre do que num futuro promissor. Triste egoísmo de subsistência, pura sobrevivência instintiva e irracional que desconsidera a própria prole fadada a eternizar o seu desatino. Os governos e sistemas políticos mantêm essa situaç
15 Regava a salsa, o coentro e o manjericão que cresciam na sua janela da cozinha. Tinha adquirido o hábito de sua mulher de cultivar ervas aromáticas em casa. Sempre gostou de plantar. Por onde passasse, levava alguma semente para depois. Preparava seu parco almoço e queria o coentro para temperar a posta de peixe que cozia. Enquanto fazia o comer, o gato a farejar veio à cozinha. - Aqui não tens nada pra ti… - disse ao gato que olhava para cima. Ele pareceu entender, voltando-se para sua tigela de ração. O gato o fazia falar. Às vezes, quando saia, ao encontrar-se com alguém, sua voz pigarreada custava a sair. Lembrava-se que até aquele momento do dia, ainda não tinha pronunciado uma única palavra… Sentia falta de conversar. Não gostava das conversas da praceta que achava fúteis e pouco inteligentes. Sentia falta das discussões vivas que tinha com os amigos nos tempos do liceu. Entendia-se comunista naqueles tempos e não parava enquanto o outro não desistisse de se opor.
Pegando o fio à meada... Justo deve ser aquilo que é aceito. Se houve quem trabalhasse a terra e domesticasse os animais e dissesse que ali era seu, então seria justo este conceito de propriedade privada inviolável. Se ao contrário dissesse que era meu e não usasse, então seria justo que quem quisesse usar o fizesse seu. Se tivesse muita, e por não conseguir trabalhar a terra toda, cedesse a quem quisesse trabalhar ali em troca de uma paga, então não seria justo porque o trabalho é dele mas a terra não. Pagaria-se para trabalhar. Ter mais que eu pudesse trabalhar não seria justo, mas se eu pagasse a quem quisesse ali trabalhar para mim, seria justo porque receberia-se por trabalhar. O que difere então, por ser ou não justo, entre arrendar terra ou trabalho, tendo ambos um preço? Por que pagar pelo trabalho de alguém em suas terras seria mais justo que alguém pagar para trabalhar nessas terras tirando dali o seu sustento? A resposta natural é que a terra só pode pertencer a
14 A conversa corria solta em meio ao carteado. Aquela manhã fria de inverno era suportada com o Sol que enchia o céu todo azul. O velho, sentado no banco com as mãos nos bolsos do casaco, de olhos fechados a apanhar sol, ouvia atento enquanto esperava sua vez na rodada. O assunto da discussão era o polêmico projeto de lei sobre a morte assistida. - Cá pra mim isso é coisa dos comunistas e daquelas meninas do bloco. Esse assunto não vinha à baila se não estivessem no governo. É a política meu velho... cá pra mim isso nem sequer devia ser discutido. Tirar a vida a um, só Deus! - O Tozé, tu ‘tais pr’aí a falar do que não sabe – retrucou um outro na mesa. – Então não vê que é um direito… sabe lá você o que se passa com alguém que já não aguenta de tanto sofrer… - Cá pra mim, só Deus… - repetiu baixinho o Tozé sem tirar os olhos das cartas. - Acho que nesse assunto há que se ver a situação do doente. – Disse o parceiro do Tozé entrando na conversa. – Há casos em que se está
Para um brasileiro a imagem dos EUA é o modelo a seguir, e a melhor representação do que é ser americano é o ato de se encher sofregamente o carrinho de compras... onde cabem aliás, além de todas as coisas do mercado, as roupas, o fast food, os carros, os filmes, as músicas, os jogos, os eletrodomésticos, os... onde cabe todo o consumismo ... Afinal é o consumo o responsável por toda a riqueza e poder dos EUA no mundo; a liberdade! a liberdade de comprar!. O brasileiro também se tornou um consumista, não importa seu poder aquisitivo. Ele também gosta de comprar... Muito bom para a Economia no presente... péssimo no futuro... Mesmo aquele que pode comprar tudo, haverá um momento em que não quererá comprar mais nada... a vontade de consumir acaba assim como os recursos utilizados para se produzir. Meios e desejos são finitos e até que tenhamos outro, o planeta também. Tudo depende daquilo a que chamamos valor. O que pode valer mais? O celular da última geração ou ver o fundo daquele
A liberdade é função da maturidade do indivíduo. Como entre uma criança e um adulto, um tem mais que o outro porque amadureceu e faz uso da liberdade sem causar dano a si próprio ou a outrem, ou seja, o grau de liberdade pode ser prejudicial se não corresponder à maturidade. Uma sociedade assume o comportamento dos indivíduos que a compõem. Se os indivíduos estão mais avançados e maduros para viver coletivamente, desfrutam de mais liberdade. Ao contrário, outras sociedades não, e apesar de se constituírem na forma de direito mais igualitário possível, não chegam a ser de fato verdadeiras democracias. Existem pelo mundo afora grupos sociais organizados com mais ou menos liberdade, vivendo da forma mais harmoniosa possível apesar de não preferencialmente a ideal. Sendo a liberdade característica sem a qual não existe a natureza humana, seu grau não diferencia o indivíduo a não ser por essa própria capacidade de compreensão, sendo mesmo aceita em algumas sociedades, certa redução de
Velhos problemas que a pandemia traz à baila por essas bandas... A questão do trato com os velhos no velho continente, com cada vez mais velhos, é incompreensível para um brasileiro. Para este, seus pais quando já não podem ficar sozinhos ficam com ele. Ponto. Na Europa se envelhece com a naturalidade de sermos despachados para um Lar... doce nome que se dá ao entreposto para o cemitério. Estranho? Parece ser só a esse brasileiro pois não sei dizer sobre outros lugares... Quando não havia o Estado, o velho simplesmente morria a trabalhar; quem tivesse algum património durava um pouco mais a depender do trabalho dos outros... Quando não havia o Estado que amparava, quem podia fazia o seu pé de meia, geralmente comprava um imóvel para arrendar; quem não podia ficava a depender da caridade... Quando a Segurança Social começou a proporcionar tratamento médico e pensões, a caridade deixou de ser o único meio e a sociedade compreendeu que era justo distribuir o que produzia àqueles que
13 Não queria que aquele livro terminasse, lia-o aos poucos. Dava a impressão que seria o último e que não haveria outro igual. Guardado há muitos anos, estava ali separado para os dias tranquilos da velhice… Uma extensa obra literária que poucos conheciam. Falava das impressões de alguém num país estrangeiro que admirava… Identificou-se totalmente com os pontos de vista do escritor, sentindo até um certo alívio por alguém ter percebido e dito aquilo que teve mantido ao longo da vida como princípios. Fechou o livro com um gosto de convicção e triunfo, arrumando-o de volta com carinho no seu lugar especial na estante... Foi à cozinha preparar o lanche da tarde, sentia mesmo fome. Enquanto mastigava as bolachas que molhava na meia-de-leite, olhou o relógio e decidiu que ainda havia tempo para buscar a calça que havia posto nos reparos. Estava bom tempo e achou que valia a pena aproveitar aquele fim de tarde. Intimamente queria encontrar-se com alguém para conversar, estava ainda
"Sendo a liberdade a mais nobre das faculdades do homem, não me deterei em examinar se não é degradar nossa natureza, se não é colocar-se ao nível dos animais escravos ao instinto e ofender o Autor de nossa existência, renunciar sem reserva ao mais precioso de todos os seus dons..." Recorro a estas palavras de Rousseau para lembrar aquilo que nos é mais caro e pelo qual nos organizamos com leis. Aquilo sem o que não se pode reconhecer a própria natureza humana. É a liberdade do indivíduo que caracteriza o homem, o seu direito a base de organização da sociedade, e o seu aperfeiçoamento a herança cultural da civilização ocidental. Apesar de todas suas distorções, é a Democracia a única forma de organização política que preserva a liberdade. É o único sistema no qual cada indivíduo sente-se inviolado nesse direito, ao mesmo tempo que concorda com as condições que lhes são impostas para que o outro também o sinta. Todos livres e independentes vivendo em conjunto, onde to
Nossa precariedade política fica patente no momento atual. O estado de exceção serve bem a estes casos e está previsto na Constituição; não nos valeu. O Federalismo e o estilo tíbio autocrático desse presidente têm se mostrado incapazes de enfrentar a pandemia a despeito da dedicação e empenho isolados de alguns. Está claro que uma ameaça viral como essa requer uma ação central e concertada, baseada na experiência dos países infectados mais cedo e no conhecimento científico que se vai alcançando. A correria desvairada dos governadores na tomada de medidas restritivas entrou em choque com a habitual falta de capacidade de consenso do presidente que tristemente, se não fosse apenas por defeito e total desinformação, só foi capaz de ver nesse embate o risco da sua reeleição; perdeu uma grande oportunidade... A população órfã expôs suas fragilidades à mercê do vírus e da impiedade de empresários estúpidos que recorrem ao Utilitarismo num momento em que ao invés de se atacar é preciso
12 A sobrinha vinha apanhá-lo para o aniversário de casamento. Na verdade era sobrinha de sua mulher mas mantinham um com o outro uma relação muito próxima e carinhosa. Margarida e João comemoravam 30 anos de casados. Tiveram dois rapazes que emigraram depois de concluídos os estudos. Moravam em Campo de Ourique e sempre chamava o tio para os convívios da família. O velho nunca os faltou. Também lá estariam a mãe de Margarida, a Carmem, sua cunhada, irmã mais velha de sua falecida mulher e o Agostinho o último filho de seus sogros. Carmem era viúva e Agostinho casado com Maria Augusta, as filhas destes e seus maridos também lá estariam. Os parentes de sua mulher tornaram-se a sua família, já que não tinha irmãos e não tivera filhos. O velho tinha por Margarida uma afeição especial. - Não quer levar o cachecol tio? Quando voltar estará mais fresquinho… - disse-lhe a sobrinha que o aguardava na sala. Ele tinha vestido o casaco do fato sobre um suéter de lã. Queria estar bem apre
Ao ver os "sem-abrigo" de Las Vegas serem recolhidos em "vagas" num estacionamento a céu aberto, fico a pensar na sociedade do país mais rico do mundo... De que valem os direitos e as liberdades individuais do bastião da Democracia se é este o valor que dão às pessoas... Fato isolado, mas dá o que pensar como nos comportaremos quando tudo isso passar...