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Regava a salsa, o coentro e o manjericão que cresciam na sua janela da cozinha. Tinha adquirido o hábito de sua mulher de cultivar ervas aromáticas em casa. Sempre gostou de plantar. Por onde passasse, levava alguma semente para depois. Preparava seu parco almoço e queria o coentro para temperar a posta de peixe que cozia. Enquanto fazia o comer, o gato a farejar veio à cozinha.
- Aqui não tens nada pra ti… - disse ao gato que olhava para cima. Ele pareceu entender, voltando-se para sua tigela de ração.
O gato o fazia falar. Às vezes, quando saia, ao encontrar-se com alguém, sua voz pigarreada custava a sair. Lembrava-se que até aquele momento do dia, ainda não tinha pronunciado uma única palavra…
Sentia falta de conversar. Não gostava das conversas da praceta que achava fúteis e pouco inteligentes. Sentia falta das discussões vivas que tinha com os amigos nos tempos do liceu. Entendia-se comunista naqueles tempos e não parava enquanto o outro não desistisse de se opor. Sorriu-se ao lembrar da ingenuidade dos jovens. Hoje descria de qualquer doutrina ideológica. Para ele, só havia um ponto comum em toda história do homem que o fazia mover-se; seu interesse egoísta. Achava-o natural e salutar desde que houvesse algo que lhe impusesse limites. Não era religioso mas tinha fé. Em jovem considerava-se um otimista quando não havia lugar para credos. Com o tempo passou a crer em Deus e na alma, achou mesmo que isso acontecer-lhe-ia mais cedo ou mais tarde. Achava ser inevitável ao homem descobrir sua pequenez. Que terrível não seria a vida se não fosse assim…
Lembrou de um senhor que tinha conhecido há alguns anos. Provavelmente já teria falecido e quem sabe não estaria agora convencido…
- Hoje é um dia que me custa muito… - disse o conhecido que ocupava-se de um conserto, na garagem do edifício em que moraram. - O 15 de fevereiro é o aniversário da morte de meu filho. Nunca me vou conformar por esse filho querido ter-se ido antes de mim…
- Sr. Alfredo, não pense assim. Devemos sentir saudade e não tristeza. Saiba que o que morre é o corpo. Seu filho continua vivo em algum lugar que Deus lhe destinou… - quis consolar-lhe.
- O que vale é se estivesse aqui… eu o vendo. Não acredito que esteja vivo… você me desculpe mas não acredito em sua religião. – Respondeu-lhe fechando-se na sua dor. Sentia ele próprio o sofrimento daquele homem, a imaginar como seria árido o deserto de uma vida sem fé.
- Pois saiba que não morremos Sr. Alfredo. Se ainda não acreditamos de todo, então que pelo menos aceitemos e vivamos melhor assim…
- Sou um bocado agnóstico… sabe… sempre vivi dessa forma. Nada me pode tirar esse sofrimento. Prefiro viver assim, sem ilusões.
- Não é uma ilusão. Ouça. O senhor pelo menos como católico por nascimento, procure uma igreja que lhe agrade, uma capela, um lugar onde possa estar em paz e silêncio. Faça um pensamento bom para seu filho… tenha a certeza que ele vai ouvir-lhe e sentir-se feliz…
- Já fiz isso. É a primeira coisa que faço quando acordo todo dia 15 de fevereiro…
O velho a lembrar-se daquele diálogo sentiu-se confortado em sua fé. Estava convencido que para cada um haveria de chegar o dia dessa conclusão. O espírito é imortal.
Pensou em sua mulher. Ela mesmo convenceu-se, já madura, na imortalidade da alma. Ele acreditava que quando pensava nela, ela o ouvia e sentia-se feliz por ser lembrada…
O grito do gato ao pisar-lhe a cauda o tirou daqueles pensamentos. O cheiro dos coentros que coziam abriu-lhe o apetite. Lembrou que a mulher gostava de peixe cozido e, como do nada, sentiu-se feliz…

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