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O almoço há muito terminado deu lugar ao repouso em sua cadeira. O gato estava sentado a sua frente com os olhos fechados. O velho na mesma posição dormitava com o semblante quase risonho. Aquele diálogo mudo já durava algum tempo. As janelas fechadas garantiam o silêncio quebrado pelo som do interfone. Era o Sr. Afonso que tinha marcado a vinda para olhar o esquentador. Há uns anos não se viam. Da última vez que foi necessário um reparo, o novo aparelho ainda estava na garantia. O Sr. Afonso já prestava serviço ao velho desde há muito anos; ele também já reformado mas ainda fazendo alguns serviços para os conhecidos.
- Bem-haja por ter vindo Sr. Afonso! Há quanto tempo! Sff de entrar. O velho sorridente cumprimentou-o à porta enquanto o gato espreitava os dois, ainda sentado no sofá, com os olhos semicerrados.
O velho achou o amigo bem envelhecido, já completamente calvo, magro e bem arqueado. A respiração ofegante não escondia que ainda continuava o vício do tabaco, mas o que mais lhe chamou a atenção foram as duas grandes e reluzentes alianças no mesmo dedo da mão esquerda.
- Então como vai isso Sr. Afonso? Como lhe tem saído a vida? – Não está fácil… – respondeu olhando para o chão, ainda com sua maleta na mão.
- Venha sentar-se um pouco. Beba comigo um café. O velho o trouxe para a cozinha e o pôs mais à vontade.
– Vamos experimentar essa cafeteira que ganhei da Dinha. Lembra-se dela?
– Então não lembro? Como está aquela rapariga?
– Aquela rapariga já está casada há 30 anos… respondeu o velho sorrindo. – O Sr. Afonso quer experimentar um café mais forte ou bebe um descafeinado como eu? Isso agora são só modernices. Há cafés para todos os gostos mas ainda prefiro o coador e o grão moído na hora… Poucas vezes uso esse presente da Dinha. Essas cápsulas têm piada… Sabia que são recicladas?
Os dois estavam ali em silêncio, com as chávenas vazias na mão, quando o velho perguntou atencioso.
– Ficaste viúvo Sr. Afonso? Quando foi?
- Minha Albertina morreu no Verão passado. Lutou muito com a doença mas Deus a levou para o seu descanso… Respondeu com um sorriso que mal disfarçava o que diziam os seus olhos.
- É assim Sr. Alfredo. Os que vão deixam saudades. Neste Dezembro fazem quinze anos que a falecida Zezé partiu e ainda sinto sua falta do mesmo jeito… O velho disse isso procurando os olhos do amigo postos na chávena vazia. O outro ia levantar da cadeira mas deixou-se cair pesado, com o olhar vazio na direção do velho.
- Temos que continuar na luta amigo… Disse isso pondo a mão em seu ombro. Como está seu filho? O Francisco, não é? Ele casou?
Procurou mudar os pensamentos do amigo pro filho único que era o seu maior orgulho.
- O Francisco está comigo agora. Veio morar lá em casa com a mulher e o filho.
- Já é avô Sr. Afonso! Que alegria! Como o tempo passa rápido. Noutro dia vi-o ainda um rapazote a ajudar-lhe aqui em casa… O velho não escondeu sua surpresa com um sorriso largo e sincero.
- O pequeno vai fazer dois anos. Meu Francisco está desempregado. Ele e a mulher precisaram deixar a casa arrendada e vieram lá pra casa. A vida não está fácil. Ele ajuda a mulher a vender os bolos que ela faz, ela trabalha num cabeleireiro mas ganha pouco Seu subsídio vai acabar e eu tenho ajudado como posso. Minha pensão não é muita…
Ia baixando o tom da voz quando sua tosse encatarrada interrompeu-o. Levantou-se e buscou a maleta. O velho ainda sentado atalhou a narrativa.
- Mas então Afonso – Não o chamou Senhor; quis ser mais informal. Que maravilha ter um neto! Dois anos hein! Daqui há pouco já lhe cresce a barba! Disse a brincar, fazendo-o tossir também.
O outro sorriu. Lembrou do menino e de como se parecia com o filho. Imaginou-o já crescido, com barba, com um bom emprego, quem sabe um doutor… Dr. António Carlos Rodrigues… Já tinha nome de doutor… Pensando nisso sentiu medo de morrer, andava doente também, não queria morrer sem ver no neto um homem! Um homem com o seu nome! Pensou na sua saúde, pensou no tabaco, buscou a maleta e perguntou pelo problema no esquentador.
O velho levantou-se e mostrou o que se passava. A chama piloto custava a acender… Não era sério o problema, bastou trocar uma pequena bateria…
- Muito obrigado Sr. Afonso! O senhor sempre me ajudando a não tomar banhos frios… brincou ao se despedir.
O homem sorriu. Guardou suas ferramentas e o dinheiro do trabalho. O aperto de mãos foi substituído por um abraço à porta.
- Até à próxima! Quando quiser é só chamar – Disse o homem já nas escadas.
O velho fechou a porta e voltou à cozinha. Ia desligar a cafeteira quando reparou que o Sr. Afonso havia esquecido o maço de tabaco…

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