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A sobrinha vinha apanhá-lo para o aniversário de casamento. Na verdade era sobrinha de sua mulher mas mantinham um com o outro uma relação muito próxima e carinhosa. Margarida e João comemoravam 30 anos de casados. Tiveram dois rapazes que emigraram depois de concluídos os estudos. Moravam em Campo de Ourique e sempre chamava o tio para os convívios da família. O velho nunca os faltou. Também lá estariam a mãe de Margarida, a Carmem, sua cunhada, irmã mais velha de sua falecida mulher e o Agostinho o último filho de seus sogros. Carmem era viúva e Agostinho casado com Maria Augusta, as filhas destes e seus maridos também lá estariam. Os parentes de sua mulher tornaram-se a sua família, já que não tinha irmãos e não tivera filhos. O velho tinha por Margarida uma afeição especial.
- Não quer levar o cachecol tio? Quando voltar estará mais fresquinho… - disse-lhe a sobrinha que o aguardava na sala. Ele tinha vestido o casaco do fato sobre um suéter de lã. Queria estar bem apresentado e achou que não ficava bem ir com o cachecol. Disse: - Estou bem assim Dinha! Não vou sair mais tarde… - respondeu sorrindo. - Não tenho mais programas para hoje!
- O senhor está muito bonito e podia querer encontrar-se com a namorada… - brincou.
- Acho que quem namora-me és tu Dinha! Sempre a engraxar-me…
Gostava de ir a Campo de Ourique. Tinha conhecido sua mulher ali naquele bairro, numa missa na Igreja do Santo Condestável. Vieram ali mais tarde a casarem-se.
Todos já lá estavam para o almoço e conversavam animadamente quando o velho chegou. Carmem veio abraçá-lo na porta e João ao cumprimentá-lo, ofereceu-lhe um cálice de vinho Madeira de 1985, ano em que se casara. O velho tirou do bolso e deu à Margarida um pequeno embrulho com um par de lenços finos onde havia mandado bordar “João e Dinha – juntos 30 anos” por baixo de um casalinho de pombos que se beijavam. A sobrinha enternecera-se com o presente e o velho ficou satisfeito.
As mulheres ajudavam a servir à mesa enquanto os homens escolhiam os vinhos. O velho fora posto a sentar-se entre Carmem e Margarida. O almoço transcorria alegre em meio às histórias antigas, já contadas por eles muitas vezes, sobre os respetivos namoros, noivados e casamentos…
O velho ouvia e participava. Contou também alguns detalhes até então desconhecidos do tempo que namoriscava sua mulher… sua cunhada exclamou: - Ah! Então era por isso que ela passou a vir às missas do Campo de Ourique… O velho sentia-se bem-disposto ao lembrar daquelas coisas, não negou mesmo ser um grande galanteador…
Margarida que terminava de falar ao telefone com um dos filhos atalhou: - Então o tio foi um rapazote namorador hein?… O velho riu-se e bebericou mais um pouco do seu vinho. Estava feliz.
Carmem que ouvia atenta às histórias lembrou de um fato. – A Zezé sempre foi religiosa mas não costumava ir muito às missas… nós tínhamos em casa um oratório na saleta do rádio que nossa mãe mantinha sempre de velas acesas… era ali que às vezes a via rezar o seu terço… era devota mas não fazia disso muita demonstração… - O velho ouvia. – Uma vez vim à casa numa tarde, já estava casada nessa altura, eu e Zezé conversávamos na saleta com nossa mãe sobre maridos. Ela, que então estava solteira, disse-nos com aquele seu ar de convencida. – Por mim, só me caso se encontrar algum que me roube o coração de verdade… - Margarida virou-se pro tio. Carmem continuou: - Eu cá pensava – disse ao meter-se com a irmã - que ias ser freira porque agora só andas na Igreja do Campo de Ourique… O velho quis rir mas um pigarro engasgou-o. Bebeu outro gole de vinho e disse sério para a cunhada: - Querer ser freira ela queria mas eu a fiz mudar de ideia…
O João e o Agostinho riram-se do velho que esvaziou o cálice com um jovem sorriso no rosto...


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