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A conversa corria solta em meio
ao carteado. Aquela manhã fria de inverno era suportada com o Sol que enchia o
céu todo azul. O velho, sentado no banco com as mãos nos bolsos do casaco, de
olhos fechados a apanhar sol, ouvia atento enquanto esperava sua vez na rodada.
O assunto da discussão era o polêmico projeto de lei sobre a morte assistida.
- Cá pra mim isso é coisa dos
comunistas e daquelas meninas do bloco. Esse assunto não vinha à baila se não estivessem
no governo. É a política meu velho... cá pra mim isso nem sequer devia ser
discutido. Tirar a vida a um, só Deus!
- O Tozé, tu ‘tais pr’aí a falar
do que não sabe – retrucou um outro na mesa. – Então não vê que é um direito…
sabe lá você o que se passa com alguém que já não aguenta de tanto sofrer…
- Cá pra mim, só Deus… - repetiu
baixinho o Tozé sem tirar os olhos das cartas.
- Acho que nesse assunto há que
se ver a situação do doente. – Disse o parceiro do Tozé entrando na conversa. –
Há casos em que se está no direito e outros que não.
- Queria ver se fosse contigo… -
Instigou um outro que também esperava sentado no banco ao lado do velho.
- Não é uma questão pessoal.
Depende da situação em que se encontra a pessoa. Na minha opinião se o doente
estiver consciente, não pode ser levado à morte, mas se estiver inconsciente
sem chance de melhorar, aí eu acho que a morte pode ser provocada.
- Quem vai saber se o gajo não melhora?
Depois de morto o servicinho já estará feito… - disse o do banco que gostava da
polêmica. O velho mantinha-se calado a ouvir.
O Tozé, com os olhos pregados nas
cartas sorria convicto e com as pernas a balançar como era seu costume, repetia
baixinho: - Só Deus… não se pode tirar a vida a ninguém… mesmo que sofra… tem
de ir até o final…
- Mas homem… você não sabe o que
está a dizer… imagine-se a sofrer… a dar trabalho… a gastar dinheiro… se é pra
ficar assim, o melhor é morrer! – Você acha que a religião decide pela vontade
de uma pessoa? Não senhor! Sou eu que mando em minha vida!
O Tozé replicou como a não querer
discutir mais: - Todos nós vamos morrer de um jeito ou de outro… pode demorar
mais ou não…
O colega polêmico do banco
contou: - Tenho um parente da mulher no Norte que esteve muitos anos em casa na
cama. Não falava e não se mexia. Era a mulher que o lavava, dava o comer… cortava-lhe
as unhas e o cabelo… cheguei um dia a fazer-lhes uma visita… aquilo era um
sofrimento… aquela mulher lutou muito. Como do nada, o homem começou a melhorar
e já mexia… hoje anda em cadeira de rodas e parece que vai durar… já pensou se
matam o homem?
O Tozé continuava a sorrir e
balançar a pernas. Ganhou o jogo num supetão. – Ena! Tás cá é c’uma sorte… -
disse um a levantar-se para dar a vez. O velho e o outro aproximaram-se e
sentaram à mesa para uma nova partida. O Tozé que embaralhava as cartas, ainda
com as pernas a balançar, perguntou ao velho. – E qual é sua opinião? Acha
certo se tirar a vida a um cristão?
O velho disse calmamente: - Se já
estiver morto que diferença faz?
- Como assim? – Disse um dos que
deixou a mesa e ficou em pé a assistir.
- Se o doente só está vivo por
estar ligado a uma máquina então é porque já morreu e nesse caso não faz
diferença.
- E se não estiver numa máquina?
Retorquiu o que não se convencia da opinião do velho.
- Se não estiver numa máquina,
vai continuar vivo se tiver recursos que o sustentem… se não tiver, vai morrer
com lei ou sem lei…
O Tozé parou de balançar as
pernas e arrematou a conversa a encarar o velho que espiava suas cartas.
- Então está de acordo comigo! Tudo
é a política! Esses do governo estão nas tintas para a nossa saúde! Se depender
dos recursos do governo, então é que estamos tramados…
O velho sorriu e começou o jogo a
ganhar…
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