Avançar para o conteúdo principal

14

A conversa corria solta em meio ao carteado. Aquela manhã fria de inverno era suportada com o Sol que enchia o céu todo azul. O velho, sentado no banco com as mãos nos bolsos do casaco, de olhos fechados a apanhar sol, ouvia atento enquanto esperava sua vez na rodada. O assunto da discussão era o polêmico projeto de lei sobre a morte assistida.
- Cá pra mim isso é coisa dos comunistas e daquelas meninas do bloco. Esse assunto não vinha à baila se não estivessem no governo. É a política meu velho... cá pra mim isso nem sequer devia ser discutido. Tirar a vida a um, só Deus!
- O Tozé, tu ‘tais pr’aí a falar do que não sabe – retrucou um outro na mesa. – Então não vê que é um direito… sabe lá você o que se passa com alguém que já não aguenta de tanto sofrer…
- Cá pra mim, só Deus… - repetiu baixinho o Tozé sem tirar os olhos das cartas.
- Acho que nesse assunto há que se ver a situação do doente. – Disse o parceiro do Tozé entrando na conversa. – Há casos em que se está no direito e outros que não.
- Queria ver se fosse contigo… - Instigou um outro que também esperava sentado no banco ao lado do velho.
- Não é uma questão pessoal. Depende da situação em que se encontra a pessoa. Na minha opinião se o doente estiver consciente, não pode ser levado à morte, mas se estiver inconsciente sem chance de melhorar, aí eu acho que a morte pode ser provocada.
- Quem vai saber se o gajo não melhora? Depois de morto o servicinho já estará feito… - disse o do banco que gostava da polêmica. O velho mantinha-se calado a ouvir.
O Tozé, com os olhos pregados nas cartas sorria convicto e com as pernas a balançar como era seu costume, repetia baixinho: - Só Deus… não se pode tirar a vida a ninguém… mesmo que sofra… tem de ir até o final…
- Mas homem… você não sabe o que está a dizer… imagine-se a sofrer… a dar trabalho… a gastar dinheiro… se é pra ficar assim, o melhor é morrer! – Você acha que a religião decide pela vontade de uma pessoa? Não senhor! Sou eu que mando em minha vida!
O Tozé replicou como a não querer discutir mais: - Todos nós vamos morrer de um jeito ou de outro… pode demorar mais ou não…
O colega polêmico do banco contou: - Tenho um parente da mulher no Norte que esteve muitos anos em casa na cama. Não falava e não se mexia. Era a mulher que o lavava, dava o comer… cortava-lhe as unhas e o cabelo… cheguei um dia a fazer-lhes uma visita… aquilo era um sofrimento… aquela mulher lutou muito. Como do nada, o homem começou a melhorar e já mexia… hoje anda em cadeira de rodas e parece que vai durar… já pensou se matam o homem?
O Tozé continuava a sorrir e balançar a pernas. Ganhou o jogo num supetão. – Ena! Tás cá é c’uma sorte… - disse um a levantar-se para dar a vez. O velho e o outro aproximaram-se e sentaram à mesa para uma nova partida. O Tozé que embaralhava as cartas, ainda com as pernas a balançar, perguntou ao velho. – E qual é sua opinião? Acha certo se tirar a vida a um cristão?
O velho disse calmamente: - Se já estiver morto que diferença faz?
- Como assim? – Disse um dos que deixou a mesa e ficou em pé a assistir.
- Se o doente só está vivo por estar ligado a uma máquina então é porque já morreu e nesse caso não faz diferença.
- E se não estiver numa máquina? Retorquiu o que não se convencia da opinião do velho.
- Se não estiver numa máquina, vai continuar vivo se tiver recursos que o sustentem… se não tiver, vai morrer com lei ou sem lei…
O Tozé parou de balançar as pernas e arrematou a conversa a encarar o velho que espiava suas cartas.
- Então está de acordo comigo! Tudo é a política! Esses do governo estão nas tintas para a nossa saúde! Se depender dos recursos do governo, então é que estamos tramados…
O velho sorriu e começou o jogo a ganhar…

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Com um OE comprometido com salários e pensões não há dinheiro para o investimento; espaço para a iniciativa privada. Muito mais que a conhecida redução de impostos, deve ser com concessões e privatizações que a Economia pode crescer. Ultrapassar os tabus, garantir seu papel social, regular e deixar o Capital fazer o seu trabalho. 
O Bolsonarismo foi uma válvula de escape para o Conservadorismo brasileiro. Desperdiçou-se a oportunidade de um centro-direita governar e acertar as contas para gerar crescimento. As difíceis condições do país, agravadas pelo panorama internacional, não serão revertidas com o retorno da esquerda, pelo contrário irão deteriorar-se. A reaparecimento da direita é definitivo. Será vital surgir uma corrente mais moderada que esvazie o furor populista e livre o país de uma radicalização desgastante ainda maior.  
Se a política não é a causa do problema social mas sim consequência, podemos concluir então que a verdadeira causa está em nós. Os aspectos culturais de um povo definem sua organização social e como consequência seu modelo político, justo ou não, consoante sua própria natureza. Sendo a família a célula social, é aí que se devem concentrar todas as atenções e nesse caso, sem qualquer influência direta do Estado, cabendo unicamente aos pais a educação por valores morais de seus filhos. Dependerá dessa formação o sucesso dessa sociedade. Não cabendo em nosso povo o conceito da educação pelo Estado, será dos pais na intimidade da família essa responsabilidade. Não havendo estrutura familiar com formação moral prévia consolidada, em todos os níveis sociais, tal tarefa não poderá ser executada ou mesmo sequer reconhecida. Quer se dizer com isso que é do modelo e valores atuais das famílias que resulta o mau funcionamento da sociedade e que depende somente dessas famílias sua mudança. Começar...