Dia de faxina. As janelas abertas deixavam o ar frio da manhã entrar pela sala. Bonifácio escondido no guarda-roupa e ele ainda de robe, sentado no seu cadeirão, lia atentamente seu “Diário de Notícias” como fazia religiosamente há anos. Andou mesmo chateado com o jornal, quando depois de tantos passou de diário a quinzenal… casmurrice de velho.
Estava entretido com as notícias do Brasil, país que lhe despertava muito interesse e curiosidade, quando o canto da diarista o despertou a atenção.
“É tão tarde… a manhã já vem…
Todos dormem… a noite também…”
Desde que a senhora moldava voltou ao seu país, passou a contar com uma brasileira sempre bem-disposta, como ele próprio dizia. Altamira era o seu nome e costumava cantar enquanto trabalhava. O velho com o jornal em riste levantou os olhos e aguçou o ouvido.
“Só eu velo… o boi pega neném…”
Achou mesmo piada… muito distante daquele acalanto, imaginava um boi e a criança a correr quando Altamira entrou pela sala, descalça como de costume, com o aspirador na mão a dizer sorrindo: - Agora vou fazer barulho…
O velho baixou o jornal no colo e a inquiriu muito sisudo, com a cara mesmo de preocupado.
- Mas diga lá você por que os brasileiros estão sempre a sorrir quando as notícias do Brasil são tão ruins? Não se queixam?
Riu alto enquanto afastava os móveis da sala e ligava o aspirador à tomada. Com um pé sobre o outro e uma mão nos quadris, devolveu ao velho:
- E por que o português é tão “espinhela-caída” com tudo de bom que tem? O velho não sabia o que tinha falado mas percebeu o que quis dizer… Retrucou: - Está aqui no “Diário” que mais da metade da população brasileira não tem acesso ao saneamento básico! Acha que isso tem piada? Não reclamam e estão sempre a sorrir… era mesmo comigo… eu cá chego!
Foi a vez de Altamira se perguntar por “chegar aonde” mas resolveu, paciente que era, parar um pouco o seu trabalho, arriscando não chegar a tempo de fazer o almoço em sua casa.
Mulher de meia-idade de compleição forte, trabalhava como auxiliar de enfermagem em seu país, tinha emigrado há uma dezena de anos com o marido, motorista TIR, e um filho adolescente que com o pai praticamente a viver no estrangeiro, habitava praticamente sozinho um pequeno T2 na Amadora. Além de duas casas onde fazia faxinas, trabalhava também numa empresa de limpeza de condomínios. Às quartas-feiras à noite, ainda arranjava tempo para fazer trabalho voluntário com os sem-abrigo de Lisboa.
O velho emendou. – O que explica um país tão grande e rico viver com tanta miséria? Só se lê notícia ruim… crimes, corrupção, violência. Sempre tive vontade de ir conhecer o vosso país mas sinceramente acabo por mudar de ideias quando leio o jornal. Por que motivo não reclamam, não vão às ruas? Quando vejo tanta festa e dança e carnavais fico a pensar se vocês se importam realmente com isso?
- O senhor pode não entender mas apesar da nossa alegria – e abriu de novo seu sorriso.
- Nós temos muito bem a noção dos nossos problemas e custa muito viver daquele jeito.
- Se a situação fosse boa não saía do meu país que eu adoro. Morro de saudades de São Luís minha cidade tão linda… o senhor devia conhecer… minha mãe e minhas irmãs que estão lá… é uma vida sofrida… minha mãe agora é aposentada… trabalhou na enxada…
O velho voltou à questão, a tentar entender o porquê do alheamento que imaginava haver.
- Altamira. Diga-me lá. Se tendes compreensão dos vossos problemas, por que então não revoltam-se?
Ela suspirou. Pensou um pouco a tentar também buscar uma resposta e disse humilde em sua simplicidade.
- É porque não temos entendimento. Custa a todo mundo aquela vida difícil mas só conseguimos reclamar, e de tanto reclamar a gente cansa e não reclama mais, se conforma, vai levando… porque não tem entendimento… a mãe e minhas irmãs não têm entendimento, meu pai também não tinha. O velho Raimundo nem escrever sabia coitado… Eu estudei. Fui a única que “formou” e trabalhou com salário… a gente reclama mas depois passa. Se tem trabalho vai levando, se não tem passa necessidade… porque não tem entendimento…
Ele a viu triste por um curto instante. Tinha finalmente entendido. Ela pediu licença e ligou o aspirador. O barulho encheu a sala e sua canção morna espantou o ar frio daquela manhã...
“Todos dormem …”
Gosto do astral da Altamira mas esse velho casmurro é um chato
ResponderEliminarApós o governo do PT o "entendimento " piorou e muito, vai ser difícil rar o atraso.
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