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19
O elétrico parara. As janelas estavam baixadas e o fumo cheiroso das castanhas a assar lhe entrou pelo nariz. Ele sorriu com suas memórias… Era a época dos dias ventosos, das folhas dos plátanos pelo chão… Lembrou daquela avenida ladeada deles, quase nus, quando ainda era jovem, a caminho da escola. O sacolejo do coletivo abriu seus olhos ainda a fitarem a lembrança. Gostava daquela estação, da calma que precedia os tempos agrestes e punha fim à agitação do Verão. Resolveu que antes de seguir para casa iria à praia.
Seguiu o caminho contrário à maioria dos outros que dirigiam-se para a vila. Tomou o caminho da praia pela avenida que tanto gostava. Respirou fundo a maresia que o vento trazia e de mãos nos bolsos, lá seguiu devagar para aproveitar aquele momento. Quantas boas lembranças tinha, quantos anos se passaram. Lá estavam aqueles plátanos que tanto gostava. Aqueles mais pequenos plantados no início da avenida àquela época, já crescidos, disseram ao velho que o tempo tinha passado, mas ainda lembravam-se bem dele; do seu tapa forte no tronco que costumava dar. Um costume estranho que ele tinha. Achava que quanto mais forte o tapa na madeira, mas longe afugentava a morte… Cada qual com suas manias…
O areal da praia estava vazio. Um ou outro passeava o seu cão, longe na distância. Aconchegou a gola do casaco no pescoço e enterrou mais o boné na cabeça. Resolveu descer as escadas. Quis pisar a areia. Não tinha vindo preparado ou com a intenção disso. Quis chegar perto do mar… O frio incomodava mas o prazer das lembranças compensavam muito mais…
Franziu os olhos a buscar alguma coisa no cinza do horizonte. O mar encarneirado, maldisposto, perguntava-lhe o que fazia ali, parado a apanhar aquele frio. O velho pensou que na natureza, como na vida, tudo passa. Que os maus momentos um dia terminam, do mesmo jeito do que é bom acaba… Que as estações passam e se repetem, mostrando para quem puder ver, que a vida se renova a cada ciclo, e que quando tudo parece ser o fim, nova luz se faz num novo reinício.
Uma rajada mais forte o fez agachar. Ele reagiu. – Vai-te! – Gritou para o vento. Empertigou o corpo e abriu bem os olhos. Apesar da fragilidade do corpo, aprumou o espírito e deixou que o vento o castigasse… - Venha! – Disse agora desafiando o tempo. Já não era contra o estado do tempo que brigava mas contra o tempo que passava…
O frio que batia no seu rosto lhe deu a mais absoluta certeza que era apenas uma estação, e que como todas ia acabar para começar uma outra, que ele naquele momento quis com toda sua vontade e esperança que viesse…
Sentiu-se ainda um homem rijo, ali empertigado no vento frio da praia, satisfeito por ter desafiado o tempo. – Venha! Vamos começar tudo novamente!
O caminho de volta fez mais rápido. O tapa no tronco do último plátano soou mais forte. Na passagem subterrânea da estação do comboio cruzou-se com um grupo de rapazes com pranchas de surfar que seguiam para a praia. Sorriu.
Vamos começar de novo!

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