Avançar para o conteúdo principal

6



As senhas não andavam… O corte nas despesas públicas reduziu o número dos funcionários dos Correios e os que restavam andavam mal-humorados com o excesso de trabalho… pensava o velho.

- Não há aqui prioridade para os idosos? Perguntou uma senhora que chegava naquele momento, dirigindo-se a ele.

- Que eu saiba, não. Respondeu. – É por senhas - disse.

A senhora tirou a senha 77.

- Mas isso assim não vai… - Tenho o 77 e ainda vai no 53… reclamou alto.

Como a senhora parecia muito incomodada, o velho ofereceu-se para trocar sua senha de número 65. Ela agradeceu muito e sentando-se agitada num banco, começou a falar com o velho.

- Não tenho tempo mais para nada. Ainda vou ao mercado para fazer o almoço. Não gosto de deixar minha neta com a vizinha. Fico com ela durante o dia enquanto minha filha trabalha. Ela está doentinha… não quis trazê-la pra rua com esse tempo… Sabe como é, não se pode pagar uma creche… A vida anda muito cara… Pobrezita da Isaltina, trabalha muito e ganha pouco… O pai separou-se dela e a pensão é quase nada… Ela foi sempre muito esforçada…

A senhora começou a desfiar um rol de lamentações num tom alto que as pessoas disfarçavam não ouvir.

O velho olhando-a com interesse perguntou:

- Como se chama a netinha?

A senhora sorriu tentando esconder os poucos dentes. – Amélia. Está uma graça de menina, muito gordinha e esperta.

O velho deixou-a falar da neta com entusiasmo…

- Está mesmo linda! Já lhe começam a nascer os dentes e já trinca… Gosta do caldo de frango que eu faço… Está mesmo uma graça, o senhor precisa ver.

As senhas arrastavam-se.

- Tenho pena de deixá-la ao fim do dia. A Isaltina passa às sete da tarde e depois parece que não sei o que tenho a fazer… fico só… não gosto dessas novelas… não ligo à TV. Como as horas custam a passar, vou deitar-me cedo. Às sete e meia da manhã minha lindinha está de volta… ela preenche todo o meu dia…

O velho imaginava o lufa-lufa daquela senhora e chegou a invejar-lhe a neta. Não tivera filhos…

Ela continuou a falar como se dirigisse a todos.

- A minha Amélia está uma formosura! Outro dia acho que disse: Avó! Não é mesmo inteligente essa rapariga? Os gestos da senhora eram esfuziantes enquanto falava da neta. Sua senha caiu e o velho tentou apanhá-la. – Deixa estar; não se incomode – disse ela apanhando-a do chão.

- A Amélia deu agora para abaixar a cabecinha e ficar a olhar por entre as pernas… A mãe não tem marido e não vem por aí bebé… - disse sorrindo - que estará a pequena a querer dizer…?

- Ai de mim se não fosse essa minha rica netinha! Esta vida tem-me saído uma desgraça…

As pessoas afastavam-se já incomodadas. O velho disse à senhora:

- Mas que grande alegria deve ser ter uma linda netinha!

A senhora virou-se para ele, como se tivesse sido desperta dos seus pensamentos. Seus olhos brilharam num largo sorriso, agora sem a vergonha de esconder os poucos dentes…

Sua senha foi chamada. Levantou-se apressada, agradecendo e despedindo-se do velho.

- Muito obrigada! O senhor precisa conhecer a minha Amélia… Bem-haja!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Com um OE comprometido com salários e pensões não há dinheiro para o investimento; espaço para a iniciativa privada. Muito mais que a conhecida redução de impostos, deve ser com concessões e privatizações que a Economia pode crescer. Ultrapassar os tabus, garantir seu papel social, regular e deixar o Capital fazer o seu trabalho. 
O Bolsonarismo foi uma válvula de escape para o Conservadorismo brasileiro. Desperdiçou-se a oportunidade de um centro-direita governar e acertar as contas para gerar crescimento. As difíceis condições do país, agravadas pelo panorama internacional, não serão revertidas com o retorno da esquerda, pelo contrário irão deteriorar-se. A reaparecimento da direita é definitivo. Será vital surgir uma corrente mais moderada que esvazie o furor populista e livre o país de uma radicalização desgastante ainda maior.  
Se a política não é a causa do problema social mas sim consequência, podemos concluir então que a verdadeira causa está em nós. Os aspectos culturais de um povo definem sua organização social e como consequência seu modelo político, justo ou não, consoante sua própria natureza. Sendo a família a célula social, é aí que se devem concentrar todas as atenções e nesse caso, sem qualquer influência direta do Estado, cabendo unicamente aos pais a educação por valores morais de seus filhos. Dependerá dessa formação o sucesso dessa sociedade. Não cabendo em nosso povo o conceito da educação pelo Estado, será dos pais na intimidade da família essa responsabilidade. Não havendo estrutura familiar com formação moral prévia consolidada, em todos os níveis sociais, tal tarefa não poderá ser executada ou mesmo sequer reconhecida. Quer se dizer com isso que é do modelo e valores atuais das famílias que resulta o mau funcionamento da sociedade e que depende somente dessas famílias sua mudança. Começar...