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As senhas não andavam… O corte nas despesas públicas reduziu o número dos funcionários dos Correios e os que restavam andavam mal-humorados com o excesso de trabalho… pensava o velho.

- Não há aqui prioridade para os idosos? Perguntou uma senhora que chegava naquele momento, dirigindo-se a ele.

- Que eu saiba, não. Respondeu. – É por senhas - disse.

A senhora tirou a senha 77.

- Mas isso assim não vai… - Tenho o 77 e ainda vai no 53… reclamou alto.

Como a senhora parecia muito incomodada, o velho ofereceu-se para trocar sua senha de número 65. Ela agradeceu muito e sentando-se agitada num banco, começou a falar com o velho.

- Não tenho tempo mais para nada. Ainda vou ao mercado para fazer o almoço. Não gosto de deixar minha neta com a vizinha. Fico com ela durante o dia enquanto minha filha trabalha. Ela está doentinha… não quis trazê-la pra rua com esse tempo… Sabe como é, não se pode pagar uma creche… A vida anda muito cara… Pobrezita da Isaltina, trabalha muito e ganha pouco… O pai separou-se dela e a pensão é quase nada… Ela foi sempre muito esforçada…

A senhora começou a desfiar um rol de lamentações num tom alto que as pessoas disfarçavam não ouvir.

O velho olhando-a com interesse perguntou:

- Como se chama a netinha?

A senhora sorriu tentando esconder os poucos dentes. – Amélia. Está uma graça de menina, muito gordinha e esperta.

O velho deixou-a falar da neta com entusiasmo…

- Está mesmo linda! Já lhe começam a nascer os dentes e já trinca… Gosta do caldo de frango que eu faço… Está mesmo uma graça, o senhor precisa ver.

As senhas arrastavam-se.

- Tenho pena de deixá-la ao fim do dia. A Isaltina passa às sete da tarde e depois parece que não sei o que tenho a fazer… fico só… não gosto dessas novelas… não ligo à TV. Como as horas custam a passar, vou deitar-me cedo. Às sete e meia da manhã minha lindinha está de volta… ela preenche todo o meu dia…

O velho imaginava o lufa-lufa daquela senhora e chegou a invejar-lhe a neta. Não tivera filhos…

Ela continuou a falar como se dirigisse a todos.

- A minha Amélia está uma formosura! Outro dia acho que disse: Avó! Não é mesmo inteligente essa rapariga? Os gestos da senhora eram esfuziantes enquanto falava da neta. Sua senha caiu e o velho tentou apanhá-la. – Deixa estar; não se incomode – disse ela apanhando-a do chão.

- A Amélia deu agora para abaixar a cabecinha e ficar a olhar por entre as pernas… A mãe não tem marido e não vem por aí bebé… - disse sorrindo - que estará a pequena a querer dizer…?

- Ai de mim se não fosse essa minha rica netinha! Esta vida tem-me saído uma desgraça…

As pessoas afastavam-se já incomodadas. O velho disse à senhora:

- Mas que grande alegria deve ser ter uma linda netinha!

A senhora virou-se para ele, como se tivesse sido desperta dos seus pensamentos. Seus olhos brilharam num largo sorriso, agora sem a vergonha de esconder os poucos dentes…

Sua senha foi chamada. Levantou-se apressada, agradecendo e despedindo-se do velho.

- Muito obrigada! O senhor precisa conhecer a minha Amélia… Bem-haja!

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