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A chuva continuava fina e persistente. Abriu o guarda-chuva e dirigiu-se para casa aquela hora. Ainda não tinha pensado o que fazer para o almoço. Havia ainda uma salada de batatas e frango que sobrara do dia anterior. Achou que não era preciso fazer nada. Ia comer o que sobrou.

A calçada estava escorregadia e subia a rua com cuidado. Lembrou-se de um dos colegas da praceta que estava com o pé imobilizado por causa de uma torção naquele calçamento irregular. Mal havia virado a esquina, viu cair logo a sua frente um rapaz de pouca idade. Acorreram logo algumas pessoas e vendo-o desacordado, telefonavam para o 112.

O velho aproximou-se do rapaz. Não devia ter 20 anos – pensou ele.

Procurou protegê-lo com o seu guarda-chuva. A empregada da loja do chinês convidou que o trouxessem para dentro. Os que o assistiam temeram movê-lo e resolveram esperar com o auxílio de mais guarda-chuvas.

O velho continuava a olhar o rapaz muito pálido ali caído. Pensou o que poderia ter acontecido.

A ambulância chegou em poucos minutos. Os socorristas o examinaram e o puseram numa maca, recolhendo-o à ambulância. Como ninguém ali o conhecia, utilizaram o telemóvel do rapaz que estava em seu bolso. Ligaram para o seu último registo e, por sorte, falaram com sua irmã que disse-lhes ser o rapaz diabético. Constatado seu nível glicêmico, aplicaram-lhe o medicamento a fim de que reagisse e não fosse necessário levá-lo às urgências. Após alguns momentos recobrou os sentidos ao mesmo tempo que chegava sua mãe chorosa muito nervosa.

O velho acompanhava todo o desenrolar e pensava como um jovem, ainda com tanta vida pela frente, podia ser acometido de doenças…

As pessoas dispersaram e o 112 foi-se embora. A mãe do rapaz ainda ficou com ele um pouco mais de tempo no “chinês” que lhe oferecera uma cadeira.

Já passava muito da hora do almoço mas resolvera permanecer ali com os dois. Um forte interesse o retia.

A mãe do rapaz depois de acalmar-se percebeu a presença do velho e o seu interesse por ajudar.

- Muito obrigada pela ajuda – disse a mulher.

- Não foi nada. O rapaz está bem agora. A senhora pode acalmar-se – respondeu.

Parecia ter dito algo diferente porque a mulher voltou a chorar.

- Não chore. Seu filho está bem.

- Obrigada meu senhor, desculpe minha reação. Respondeu-lhe a mulher sentindo-se confiante para falar mais com aquele estranho – É que nossa vida está muito complicada neste momento e penso que tudo isso está relacionado.

- O que se passa? Perguntou o velho preocupado.

- Estou divorciando-me do pai dele e está a me custar muito. Sinto muito remorso por estar também afastando-o do pai. Mas ele não merece o filho que tem…

A fisionomia do velho mudou ao sentir a tristeza daquela mãe.

- Embora não quisesse que isso estivesse a acontecer, estou resoluta. Acho que o Nuno compreende e me apoia… o senhor acha que uma mulher pode aceitar um marido que a agride? – Disse manifestando uma revolta contida.

O velho surpreso só conseguiu manifestar indignação no seu rosto.

- Isso não se tolera! Disse com severidade mas tranquilo e seguro. Aquele seu comportamento encorajou a mulher a recompor-se e reforçar sua decisão.

- Já sofri muito mas agora não volto atrás!

- Está bem Nuno? Vamos agora? Dirigiu-se ao filho que escutava atento à conversa.

Despediram-se do velho agradecendo mais uma vez toda a atenção e à rapariga do “chinês” que tinha voltado ao balcão.

A chuva tinha dado uma trégua apesar do céu continuar fechado.

Continuou a caminho de casa com o alho que havia comprado.

Ao abrir a porta, verificou a caixa coletiva do correio e lembrou-se da vizinha. Não havia nada para o 2º direito. Subiu as escadas e entrou em casa. Seu amigo felino veio recebê-lo. Ao pousar as chaves no aparador apercebeu-se que tinha deixado o alho na caixa do correio.


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