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Terminado o almoço na companhia da TV, lavou o prato e os talheres. Sua cozinha era espartana. Todo comer que preparava durava duas ou três refeições. Comia pouco e rápido, moderava muito nos alimentos de que antes abusara. Às vezes não dispensava um copito de vinho e embora desaconselhado a comer pão, dele não se afastava. Gostava de frutas. Não perdia as promoções de época. Antes quando era jovem não dava importância, mas com a idade passou a apreciar lentamente o sabor de cada fruta durante às sobremesas. À noite não dispensava seu prato de sopa e o pão. Suas análises lhe diziam que não era com alimentação que devia preocupar-se. Mantinha tudo em ordem com seus medicamentos habituais já há muitos anos. Não podia queixar-se da saúde a não ser pelos joelhos que lhe tiravam o humor.
Tinha reservado aquela tarde para arrumar alguns papéis que há muito adiava. Foi buscar no armário do corredor a bandeja onde acumulava seu correio. Já não recebia cartas e ali só havia contas e muita publicidade que nunca deixava de conferir. Havia pr’ali uma caixa de cartão que ele guardava com correspondência e papéis antigos. Sabia exatamente o que ali estava guardado. Naquele dia sentiu vontade de rever aqueles papéis.
Cartas antigas, fotografias, escritos, recortes, postais, alguns telegramas, muitos cartões de Natal. Houve tempo que o correio trazia mais coisas que contas… deteve-se nas cartas… ia abrindo-as ao mesmo tempo que sorria e recordava o emitente… lembrava daqueles acontecimentos que ficaram ali eternizados. Achou entre aquilo tudo um amarrado de cartas que o fez suspirar… foram cartas trocadas com sua mulher.
Sabia de cor tudo o que ali estava escrito. Lido e relido tantas vezes, ele ou ela, às vezes liam juntos… encontrou num dos envelopes um postal que enviara então à futura esposa… no verso havia escrito a letra de uma música conhecida… achava que aqueles versos eram dele próprio… Procurou por uma carta em especial. Uma que recebera já casado, durante uma viagem a trabalho em Angola que o afastou cinco semanas de casa… quanto amor e carinho naquelas palavras… como ainda lhe arrebatavam aquelas linhas…
O velho enternecido alisava a carta. Sentia no lugar do papel frio, o calor da pele…
- Vou contar-te uma coisa que nunca disse a ninguém… - disse-lhe ela uma vez. – Tenho imenso medo de ficar sozinha. Por favor nunca deixe-me só. Não sei o que farei se morreres antes de mim… acho uma tontice minha pensar assim… - Ele lembrava daquele dia, quando ao entrar em casa de retorno dessa viagem, ela correu para abraçá-lo como uma criança amedrontada… em meio ao choro, seus beijos de carinho… - Nunca imaginei que sentisse tanto tua falta! Ouça-me bem: Jure-me que nunca mais vais deixar-me sozinha… Nunca mais viajarás sem mim… Jure-me que não morrerás antes de mim…
Ele lembrou dos seus últimos dias… fechou a carta com carinho.
Na sala restou um enorme silêncio. Em todo o apartamento notou um enorme vazio. A luz da tarde atravessava as cortinas imóveis com a janela fechada. Passou os olhos pela mobília, pelos quadros na parede, pelos porta-retratos na estante… reparou que a planta próxima à janela estava um pouco murcha. Foi à cozinha, trouxe água para regá-la, tirou-lhe algumas folhas secas. Abriu um pouco a janela. Uma brisa mais forte fez a cortina assustar o gato que dormia no sofá. O velho achou graça. Correu a cortina toda e abriu a janela. Ficou ali um longo tempo a olhar o movimento da rua.

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