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O Bonifácio precisava ir ao veterinário. Já sabia que a pensão daquele mês ia ficar mordida. Seu amigo felino já há algum tempo comia pouco e notava que emagrecia. Tentava lembrar onde tinha guardado da última vez a caixa do gato, já fazia dois anos que o Bonifácio não ia ao médico.

O velho e o gato faziam companhia um ao outro há já perto de treze anos. Fora um presente de uma sobrinha, passado um ano do falecimento da esposa. Quis que o tio tivesse companhia.

A relação entre os dois era curiosa. O velho nunca gostara muito do “presente”. Limitava-se a alimentá-lo e limpar sua areia diariamente. Não “conversava” ou fazia festinhas ao bichano. Limitava-se a ficar a olhá-lo enquanto dormia sobre o sofá. O gato também era de poucos miminhos. Quando não estava a dormir, gostava de ficar a espreitar pela janela quando ali batia o sol. O velho não lembrava-se de tê-lo ouvido miar alguma vez. Enfim, mantinham uma relação à distância… agora notava seu companheiro doente.

Como de costume, quando precisava, chamou seu amigo taxista que o levou à clínica veterinária. A sala de espera estava cheia. Cães ladravam nervosos, os maiores no chão e os menores amedrontados nos colos dos donos. Os gatos, todos dentro de suas caixas, espreitavam assustados pelas frestas. Não havia uma única cadeira para sentar. Feito o registo na receção, o velho conseguiu sentar-se no lugar de um cliente que fora chamado.

Procurou ver como estava seu companheiro, encontrou-o assutado e encolhido no fundo da caixa. Sorriu e pensou. – Hoje escuto-te a miar… sei que não gostas do médico…

A senhora ao lado com uma caniche ao colo, vestida com capricho e enfeitada com laços. Muito simpática e sorridente, perguntou o nome do gato. O velho que não estava para conversas respondeu lacônico, levando o lenço ao nariz: - Bonifácio. Não estava confortável com sua alergia habitual naquela época de pólenes a voar. A senhora ainda perguntou: - É alérgico ao gato? O velho impaciente respondeu: - À primavera! A senhora riu-se, achando piada por alguém ser alérgico à uma estação do ano… - Eu adoro a primavera mas detesto o verão! Nem eu suporto o calor, nem a minha Naná – disse puxando a cadelinha para um beijo.

O velho assoou o nariz com o lenço e sorriu educadamente. Os cães continuavam a ladrar naquela sala apertada.

- A Naná está muito doentinha. Não segura nada na barriguinha… já não sei o que faço… só lhe dou papinhas e mesmo assim vomita. Acho que está com febre… ela está muito caidinha… o senhor não acha? Perguntou levantando a cadelinha a altura dos olhos.

O velho ouvia sem mover um músculo.

- Ela está mesmo febril. O narizinho está muito quente! Veja só! – Disse isso pedindo que o velho pusesse a mão no focinho do animal. Relutante atendeu. Olhou para a mulher e disse sério: - Está frio, não está quente. A mulher assustou-se ainda mais dizendo: Ai meu Deus! Será pior?

O médico chamou pela Naná. O velho suspirou de alívio. Reparou na sua frente um senhor que “conversava” com seu cão. Parecia ignorar as pessoas ali sentadas. Fazia perguntas ao cão e o animal de fato o respondia com latidos. O homem parecia entender as respostas, o que fazia aprofundar mais suas questões. O cão continuava a responder aquele inquérito…

Um gato que parecia ter sido acidentado entrou, trazido no colo por sua dona chorosa. A mulher não conseguia controlar-se. Chorava e falava ao mesmo tempo, pedindo socorro pelo animal ferido nas patas. O gato entrou rapidamente para ser atendido e a mulher ficou à porta. Na sala de espera, muito nervosa, sentou-se no lugar da Naná.

- Não quero que o Guido morra… choramingava a mulher. – Ele caiu do telhado… acho que quis apanhar algum pássaro e caiu… ele sempre andava no telhado mas dessa vez caiu… eu não vi… avisaram-me pelo interfone…

O velho disse: - A senhora acalme-se que o animal está sendo tratado e vai ficar bem…

- Eu não sei se vou suportar perder o Guido… insistia na sua lamentação.

O Bonifácio foi chamado. O velho despediu-se da senhora e entrou no consultório.

Feita a anamnese, o médico preparou-se para verificar a temperatura do gato.

O velho pensou. – Agora vais miar…


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