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Aquela manhã não o convidava a sair da cama. O inverno continuava muito frio e as saídas habituais custavam um pouco mais.

Terminada a toilete cuidadosa e demorada, o café recém-preparado o reanimou. Seu companheiro felino já havia feito seu pequeno-almoço e ronronava em suas pernas. Olhava distraído para o calendário na parede e lembrou-se que hoje devia pagar a conta da luz; foi buscá-la nos seus papéis arrumados no aparador da entrada. Reparou num dos porta-retratos a fotografia com os amigos da praceta. Fazia quase um ano que o Luís morrera. Ajeitou o boné sobre a calva e partiu.

O barulho das chaves na fechadura trouxe a vizinha do 2º direito à porta.

- Bom dia! Está melhorzinho hoje?

- Vai-se andando – respondeu sem querer falar muito apesar de não ter melhorado daquela constipação – E a senhora como tem passado?

- Assim-assim, como Deus quer.

Essa era a introdução para o relatório diário de sua saúde à porta da casa todos os dias.

- Essa noite pensei que precisava chamar o 112. Não consegui dormir nada com aquela falta de ar horrível. Só consegui adormecer, já cansada, por volta das cinco e tal… - respondeu na espera do comentário piedoso do velho.

- Hum, hum – ele fez.

- A tosse piorou-me muito – ela continuou a pedir comiseração.

- E este tempo não ajuda em nada… - ofereceu-lhe o velho encostando-se à parede apoiado no guarda-chuva que trazia.

- O Martim também anda doentinho e a mãe anda às voltas com o médico e remédios. O senhor conhece-o. É o mais novo do meu Alberto…

- Sim, sim. Tão pequenino e já usa óculos… - respondeu confirmando e já a adivinhar o que vinha.

- Não me conformo com isso. Pobrezinho, tão novinho e obrigado a usar óculos. A mãe dele tem mania de doenças e o enche de remédios. Quase não come. Quando o Alberto era pequeno nunca o levei ao doutor. Sempre foi muito forte, comia de tudo e quando se preciso, fazia-lhe uma infusão que lhe curava tudo… É pena. A mãe dele não sabe cuidar bem do menino. Acha que remédio e mimos curam tudo. Cá pra mim é porque o menino não come comida saudável… Já se viu? Noutro dia estive lá em casa deles e o pequeno perguntou à mãe o que trazia na sacola. Eram alfaces!... Já se viu não saber o que são alfaces? – Com uma pausa esperou pela concordância.

O velho balançou a cabeça. Ela continuou.

- Não sei como o meu Alberto a deixa agir assim. O menino não precisa de remédios. Ele precisa mais é comer direito ao invés de encher-se de porcarias que ela compra e gasta tanto…

Já a revolta substituíra o mal-estar da noite passada.

O velho a olhava com atenção parecendo concordar com sua opinião na fisionomia.

- O mais velho da outra mãe também anda um palito! Parece que naquela casa não há comida! Ah, o meu Bertinho… - a resignação já ultrapassava a revolta.

- Menos mal por estar feliz agora. Como sofreu o meu filho… O senhor conheceu a primeira mulher dele, não é? Aquilo era um sofrimento…

- Conheci muito bem – disse o velho.

- A Mariana e o Alberto cresceram aqui no bairro.

- Foi uma pena o divórcio mas o importante é que ambos agora estão felizes e bem casados – disse o velho resoluto.

- É verdade. Ele gosta muita dessa mulher agora e parece que ela também gosta dele, não sei…

A mulher foi abaixando a voz como se já não tivesse mais assuntos para discutir.

O velho continuou calado, apoiado no guarda-chuva, olhando-a compreensivamente.

- A senhora foi uma muito boa mãe – disse-lhe mesmo com algum carinho.

- Lembro-me bem do Sr. Alberto e dos sacrifícios que fizeram pela educação do Bertinho. Hoje está aí um homem feito. Homem honesto e bem-educado! Que mais querer?

- Queria que a Ana cuidasse melhor dos meninos… disse agora citando o nome da nora.

- Hão-de crescer e tornar-se também homens corretos. - disse o velho – A Ana gosta muito do marido, assim como a senhora gostava do seu…

A vizinha iluminou-se de alegria e saudades. Seu sorriso de súbito iluminou o corredor escuro do prédio antigo…

- É verdade… que assim seja… Olha! Disse lembrando-se de repente – Na volta pode trazer-me o correio se faz o favor. Minhas pernas hoje estão naqueles dias…

O velho sorriu e despediu-se.

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