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Seu corpo lhe mandava vários sinais
e ele sabia de onde vinham. Aprendera que a razão e a emoção comunicam-se por
uma artéria invisível que liga o cérebro ao coração. Sempre que a emoção
queixava-se com a razão, lá ia esta desculpar-se envergonhada... Quantas
vezes deixamos a razão, cheia de razão, levar nossa vida toda certinha, até o momento
em que dá errado, e aí a emoção mais sabida e experiente diz compreensiva: - “Não
disse?”
Lembrou-se da mulher. Ela sempre
tinha razão no que dizia com tanta sensibilidade…
O telemóvel tocou e a voz
pigarreada saiu a custo dispersando aquelas memórias. Era o Centro de Saúde a
lembrar-lhe a vacinação…
Raios! Mas o que me atormenta? - Praguejou
sabendo o que era… Olhou em volta ali sentado no cadeirão. No silêncio da tarde
de janelas fechadas os quadros nas paredes espiavam-lhe… a mobília toda ao seu
redor esperava com expectativa sua resposta… levantou-se de súbito, o livro
caiu-lhe do colo, procurou o gato, não o viu, apanhou o telemóvel, quis falar
com alguém, desistiu, foi à janela entusiasmar-se para uma saída, voltou ao
cadeirão, olhou para o teto, viu teias na luminária… tinha que falar com a
senhora das limpezas. Sentiu-se sozinho e deixou-se assim ficar por um longo
tempo, a fugir da resposta que já sabia. Sua consciência, velha conhecida,
estava ali em pé parada à sua frente e ele sequer a convidava para sentar…
No olhar compreensivo da consciência
viu o rosto de Zezé. Ela lhe diria com simplicidade o que ele teimava em fazer
complicado. O conhecia melhor que ninguém e lhe sorriu no rosto da consciência
que ainda o fitava, ali parada no silêncio da sala de janelas fechadas…
Fechou os olhos. Saiu dali e adormeceu…
Guiava o Chevrolet Sedan do dia
de seu casamento… na estrada não havia paisagem nem céu… uma longa reta em meio
à névoa branca… no banco de trás havia muitas malas empilhadas… em cima das
malas estava o Bonifácio que falava: - Depressa!... Pequenas gotas de chuva
começaram a cair no para-brisas… ele saiu do carro, uma só gota de chuva
aproximou-se dele e cresceu diante os seus olhos como um ecrã… Zezé apareceu na
imagem com o penteado que mais gostava… ela sorria, linda, falava-lhe mas não a
ouvia… quis apanhar a gota e esta desfez-se em sua mão… ficou só… o carro já não
lá estava, mas a paisagem aparecera e era linda… um campo enorme de papoilas e
árvores, muitas árvores… a Zezé gostava muito de papoilas… ela estava ali agora
ao seu lado, anos mais nova como quando a conheceu… já lhe ouvia dizer: - Vamos
ali sentar-se… ela o levou pela mão até a sombra de uma árvore… ele quis falar
mas sua voz não saía… Foi quando ela lhe disse, do jeito que mais lhe fascinava
e sempre o convencia: - Tu sabes… Vê as papoilas…? Virou-se e viu as papoilas vergarem-se
ao vento súbito… a imagem de Zezé desfez-se com o vento… Sobressaltado,
levantou-se a gritar, tinha voz agora, num redemoinho mais forte as papoilas desapareceram,
naqueles campos já não havia nada, nem flores, nem árvores… ao seu pé estavam
as malas do carro… procurou pelo gato…
Despertou com o telemóvel…
deixou-o a tocar. Quis reter o que sonhara. Não costumava lembrar de seus
sonhos. Sentia-se calmo mas saudoso de sua mulher. Por que aquele sonho assim
no meio da tarde? O carro, as malas, as papoilas… nada fazia sentido… Soube tão
bem estar com a Zezé naquela árvore… estava tão linda…
- Tu sabes… aquele sorriso… seu
penteado…
Levantou-se, já era tarde,
acendeu as luzes da sala e reparou as teias da luminária. Bonifácio o encarava
do sofá com os olhos semicerrados. Foi à cozinha beber água e reteve os olhos
no campo de papoilas do calendário pendurado junto ao frigorífico... Lembrou da
mulher e de suas palavras. Ele sabia. Nunca deixou de saber desde que ela lhe
dissera há tantos anos e tantas vezes o repetira. Era com sua natureza que
brigava, era com ele próprio que se inquietava. Distante, gostava de estar só,
nenhum traço de emoção sob aquela invejável figura racional que tudo sabia e
resolvia, carinhos e improvisos raros, planeamentos e avaliações constantes…
interessava-se por tudo e por ninguém!
Ouviu a mulher a chamá-lo à
atenção pelo seu comportamento. Ele a justificar-se, orgulhoso, perguntava por
que se preocupava tanto com sua maneira de ser. Ela lhe respondeu meiga e
carinhosa: - Tu sabes… é porque interesso-me por ti!
Emocionante a sua escrita!
ResponderEliminarParece um filme revelando as delícias do tempo e o amor verdadeiro! Nival.
Que bela miniatura, que bom gosto! Ainda há esperança para a humanidade enquanto existirem pessoas capazes de escrever um texto com sensibilidade e precisão como este.
ResponderEliminarRafael (de Petach Tikva, Israel).