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Reparou nas pessoas naquela manhã de segunda-feira. Algumas mulheres punham roupas nos estendais, zeladores cuidavam da limpeza de portarias, carrinhas faziam suas entregas, o cheiro dos exaustores dos restaurantes avisava que o almoço estava a caminho. A vida rotineira voltava às suas cores naquele início de Primavera, lembrando ao velho que tudo continua e avança. Resolveu sair. Desculpou-se por ter que comprar a comida do gato. Queria também avançar…
Atrevido, deixou de propósito o boné no cabide. Cumprimentou a senhora que fazia a limpeza das escadas e partiu para o bulício da rua. Decidiu ir ao barbeiro. Não que fosse preciso mas porque queria refazer-se. Entendeu que o corte dos poucos cabelos finos e a barba feita com o cheiro de colónia condiziam com aquela segunda-feira. A conversa correu solta e bem-humorada com aquele seu conhecido de muitos anos.
Cumprimentou muitos conhecidos com quem se cruzou a caminho do supermercado. Resolveu levar também uns miminhos além da costumeira ração para o Bonifácio. Achou que ele merecia. Reparou o preço das laranjas e quis fazer sumo, apeteciam as maças que levou mais que o necessário, esqueceu do sal e do arroz que faziam falta… já no caixa resolveu contrariar a razão. Voltou para buscar uma única garrafa de cerveja de 200ml… exorbitância de desejo ao imaginá-la bem fria e com espuma no copo à sua frente durante o almoço…
Estava mesmo bem-disposto. Esquecera o joelho renitente e já apertava o passo em direção à praceta. Estaria lá alguém? Encontrou os bancos vazios. Resolveu sentar-se um pouco e descansar da sacola que lhe pesava. Uma rajada de vento frio desarrumou-lhe os poucos fios de cabelo e ele lembrou do boné no cabide. Pensou em constipação. Achou que abusava dos caprichos do tempo. Pensou em apressar a volta para casa. Um bando barulhento de andorinhas mudou a sintonia dos seus pensamentos. Sorriu. Afinal estava sol e fora só uma rajada…
Levantou-se. Resolveu comprar uma metade de frango para o almoço. Adorava comer frango assado e deixar os ossos o mais limpo possível. Sentiu apetite. A velha grelha do conhecido restaurante tresandava de longe… a sacola do supermercado já pesava quase nada… lá se foram o frango e o velho ao encontro da singela garrafa de cerveja…
O Bonifácio cheirou o frango. Não quis saber dos miminhos. Enroscado em suas pernas quase o fez tropeçar. O velho riu-se. – Tu também gostas de frango, eu sei… já lá vai um naco! O velho abriu a outra folha da janela da sala e pôs a mesa com esmero. Deixou o surrado individual de lado e resolveu usar uma toalha limpa. Concluída a arrumação com o copo da cerveja, sentou-se satisfeito e almoçou com vontade.
Como de costume os ossinhos repousavam limpinhos à beira do prato. O copo vazio testemunhava o regalo. Ainda com o guardanapo ao pescoço reclinou-se na cadeira e suspirou com os olhos fechados. O barulho da janela que bateu com o vento despertou o velho do cochilo. O Bonifácio ainda lá estava a espera de outro naco que já não havia. Levantou-se sobressaltado para fechar as janelas. Enxotou o gato e apressado tirou a mesa. Lavou a loiça e voltou à sala para aconchegar-se no seu cadeirão. O gato sentou-se à sua frente como quem esperasse alguma coisa. O velho confrontou-se com o silêncio da sala e voltou a abrir uma folha da janela para o Bonifácio… a algazarra das andorinhas nas árvores da rua preencheu o silêncio da sala. O velho sorriu e voltou a adormecer.
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