Avançar para o conteúdo principal

9



Não conseguia dormir. Acordava sobressaltado dos poucos cochilos. Tentava encontrar uma razão para o seu estado já que o colega não era assim tão conhecido.

O Júlio havia morrido e seu enterro seria aquela manhã. Ele lá iria por consideração e respeito aos habitués da praceta.

Sentia-se mal quando levantou bem cedo. Não gostou do que viu ao espelho. Sua boca estava seca, notou a pele mais flácida e mais seca, seus poucos cabelos finos mais raros naquela manhã. Seus olhos vermelhos da noite mal dormida lacrimejavam por cima das olheiras que lhe marcavam ainda mais o rosto envelhecido. Sentiu-se velho. Seria a morte do colega o motivo daquela sensação ruim? Afinal o Júlio era bem mais velho e já estava doente há muito tempo. Era esperado que a qualquer momento recebessem a má notícia.

Arrumou-se e partiu para o cemitério onde decorria o velório. Fazia um belo dia de primavera e planeou ir andando, porque não quis ficar em casa a espera da hora para apanhar o autocarro. A rua fervilhava de vida. Era hora de ponta para a entrada no trabalho e nas escolas. Carros e peões enchiam as vias por que passava a caminhar devagar, desligado de todo movimento que o cercava. Não ouviu os impropérios que lhe dirigiu um condutor por atravessar uma rua fora da passadeira. Estava completamente introspetivo a caminho do cemitério.

Seu mal-estar perdurava, chegou a pensar estar doente, sentia a boca seca e uma fraqueza que dificultava o andar. Entrou num café, sentou-se e pediu água. Uma rapariga simpática que servia às mesas perguntou se estava bem. Ele sorriu, agradeceu e deixou-se ficar a beber o copo-d’água bem devagar. Enquanto bebia sentiu-se só e desprotegido, ali naquele café movimentado àquela hora. Não costumava ter maus pressentimentos ou coisa parecida. Não entendia porque se sentia assim e não podia deixar de pensar n’alguma relação com o Júlio…

Como do nada ouviu ao lado um ahhh! efusivo de uma senhora. Fixou a atenção naquele diálogo.

- Que bom Clarinha! Graças a Deus você conseguiu! Demorou mais veio. O António deve estar que não se cabe… muitos parabéns…

- Eu e o António estamos mesmo muito felizes. – disse a outra mulher. – É verdade que já perdia as esperanças… lembra-se que cheguei a fazer aquele tratamento… não deu certo e agora, do nada, apareceu-me esta notícia!

- Mas que notícia! Benza-a Deus e à criança! – Exclamou a senhora. O velho ouvia com atenção.

- Nem quis acreditar quando o médico confirmou… e olhe, já tem nove semanas o danadinho…

- Já sabe que é menino?

- Não, mas tenho certeza que será! Já estou comprando roupinhas azuis e o António finalmente vai poder arrumar o segundo quarto para o nosso bebé… ele sempre quis fazer isso, hesitava falar no assunto, mas sei que todos esses anos sempre manteve a expectativa… ele queria muito ser pai… ah! Que bom que tudo isso está acontecendo… estamos vivendo um sonho… vamos começar agora nossa vida de pais… nem sei o que lhe diga de tanta felicidade!

- Cada criança que nasce é uma prova de que Deus confia no homem… Declarou a senhora num tom solene de sabedoria.

- Ele confia que nós seremos bons pais e que o nosso filho nos fará muito felizes!

- Já escolheram o nome desse menino?

- O pai quer que se chame como o futuro avô que já está todo babado… Júlio Manuel…

O velho lembrou-se do Júlio e partiu para o cemitério apressado. Tinha-se demorado muito no trajeto. Ao chegar, o velório já tinha terminado e o caixão encaminhava-se para a sepultura. Cumprimentou os colegas da praceta e os familiares do finado. Havia entre todos um ambiente de paz e resignação. Acompanhou o cortejo até meio do caminho mas não quis seguir até o final. Resolveu dali voltar. Tinha a impressão que já não era mais necessário acompanhar o Júlio naquela última caminhada. Ele já havia partido e já não estava mais ali…

O velho que voltava por entre as alamedas do cemitério notou as árvores em botão a contrastar no fundo azul do céu primaveril… Lembrou da conversa no café e pensou com os seus botões:

- Cada criança que nasce…

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Com um OE comprometido com salários e pensões não há dinheiro para o investimento; espaço para a iniciativa privada. Muito mais que a conhecida redução de impostos, deve ser com concessões e privatizações que a Economia pode crescer. Ultrapassar os tabus, garantir seu papel social, regular e deixar o Capital fazer o seu trabalho. 
O Bolsonarismo foi uma válvula de escape para o Conservadorismo brasileiro. Desperdiçou-se a oportunidade de um centro-direita governar e acertar as contas para gerar crescimento. As difíceis condições do país, agravadas pelo panorama internacional, não serão revertidas com o retorno da esquerda, pelo contrário irão deteriorar-se. A reaparecimento da direita é definitivo. Será vital surgir uma corrente mais moderada que esvazie o furor populista e livre o país de uma radicalização desgastante ainda maior.  
Se a política não é a causa do problema social mas sim consequência, podemos concluir então que a verdadeira causa está em nós. Os aspectos culturais de um povo definem sua organização social e como consequência seu modelo político, justo ou não, consoante sua própria natureza. Sendo a família a célula social, é aí que se devem concentrar todas as atenções e nesse caso, sem qualquer influência direta do Estado, cabendo unicamente aos pais a educação por valores morais de seus filhos. Dependerá dessa formação o sucesso dessa sociedade. Não cabendo em nosso povo o conceito da educação pelo Estado, será dos pais na intimidade da família essa responsabilidade. Não havendo estrutura familiar com formação moral prévia consolidada, em todos os níveis sociais, tal tarefa não poderá ser executada ou mesmo sequer reconhecida. Quer se dizer com isso que é do modelo e valores atuais das famílias que resulta o mau funcionamento da sociedade e que depende somente dessas famílias sua mudança. Começar...