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Não conseguia dormir. Acordava sobressaltado dos poucos cochilos. Tentava encontrar uma razão para o seu estado já que o colega não era assim tão conhecido.

O Júlio havia morrido e seu enterro seria aquela manhã. Ele lá iria por consideração e respeito aos habitués da praceta.

Sentia-se mal quando levantou bem cedo. Não gostou do que viu ao espelho. Sua boca estava seca, notou a pele mais flácida e mais seca, seus poucos cabelos finos mais raros naquela manhã. Seus olhos vermelhos da noite mal dormida lacrimejavam por cima das olheiras que lhe marcavam ainda mais o rosto envelhecido. Sentiu-se velho. Seria a morte do colega o motivo daquela sensação ruim? Afinal o Júlio era bem mais velho e já estava doente há muito tempo. Era esperado que a qualquer momento recebessem a má notícia.

Arrumou-se e partiu para o cemitério onde decorria o velório. Fazia um belo dia de primavera e planeou ir andando, porque não quis ficar em casa a espera da hora para apanhar o autocarro. A rua fervilhava de vida. Era hora de ponta para a entrada no trabalho e nas escolas. Carros e peões enchiam as vias por que passava a caminhar devagar, desligado de todo movimento que o cercava. Não ouviu os impropérios que lhe dirigiu um condutor por atravessar uma rua fora da passadeira. Estava completamente introspetivo a caminho do cemitério.

Seu mal-estar perdurava, chegou a pensar estar doente, sentia a boca seca e uma fraqueza que dificultava o andar. Entrou num café, sentou-se e pediu água. Uma rapariga simpática que servia às mesas perguntou se estava bem. Ele sorriu, agradeceu e deixou-se ficar a beber o copo-d’água bem devagar. Enquanto bebia sentiu-se só e desprotegido, ali naquele café movimentado àquela hora. Não costumava ter maus pressentimentos ou coisa parecida. Não entendia porque se sentia assim e não podia deixar de pensar n’alguma relação com o Júlio…

Como do nada ouviu ao lado um ahhh! efusivo de uma senhora. Fixou a atenção naquele diálogo.

- Que bom Clarinha! Graças a Deus você conseguiu! Demorou mais veio. O António deve estar que não se cabe… muitos parabéns…

- Eu e o António estamos mesmo muito felizes. – disse a outra mulher. – É verdade que já perdia as esperanças… lembra-se que cheguei a fazer aquele tratamento… não deu certo e agora, do nada, apareceu-me esta notícia!

- Mas que notícia! Benza-a Deus e à criança! – Exclamou a senhora. O velho ouvia com atenção.

- Nem quis acreditar quando o médico confirmou… e olhe, já tem nove semanas o danadinho…

- Já sabe que é menino?

- Não, mas tenho certeza que será! Já estou comprando roupinhas azuis e o António finalmente vai poder arrumar o segundo quarto para o nosso bebé… ele sempre quis fazer isso, hesitava falar no assunto, mas sei que todos esses anos sempre manteve a expectativa… ele queria muito ser pai… ah! Que bom que tudo isso está acontecendo… estamos vivendo um sonho… vamos começar agora nossa vida de pais… nem sei o que lhe diga de tanta felicidade!

- Cada criança que nasce é uma prova de que Deus confia no homem… Declarou a senhora num tom solene de sabedoria.

- Ele confia que nós seremos bons pais e que o nosso filho nos fará muito felizes!

- Já escolheram o nome desse menino?

- O pai quer que se chame como o futuro avô que já está todo babado… Júlio Manuel…

O velho lembrou-se do Júlio e partiu para o cemitério apressado. Tinha-se demorado muito no trajeto. Ao chegar, o velório já tinha terminado e o caixão encaminhava-se para a sepultura. Cumprimentou os colegas da praceta e os familiares do finado. Havia entre todos um ambiente de paz e resignação. Acompanhou o cortejo até meio do caminho mas não quis seguir até o final. Resolveu dali voltar. Tinha a impressão que já não era mais necessário acompanhar o Júlio naquela última caminhada. Ele já havia partido e já não estava mais ali…

O velho que voltava por entre as alamedas do cemitério notou as árvores em botão a contrastar no fundo azul do céu primaveril… Lembrou da conversa no café e pensou com os seus botões:

- Cada criança que nasce…

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